A Imperatriz
- Outra Cancha
- 14 de abr. de 2022
- 3 min de leitura
Falar sobre uma imperatriz talvez pressuponha, para muitos, uma finesse e uma elitização exacerbadas, às quais eu, definitivamente, não possuo.
No entanto, a imperatriz que dá título a este texto não carrega consigo esta alcunha por ser de uma nobre família europeia, cercada de histórias de séculos passados, honrarias e tradições vazias ou retrógradas. Nada disso. A imperatriz da qual vou falar um pouco foi e é chamada assim por alguns pelo que ela própria fez, com o próprio suor e esforço e é ainda viva e contemporânea.
Falarei de Sisleide do Amor Lima, brasileira natural de Esplanada, interior da Bahia, mais conhecida como Sissi ou Imperatriz Sissi.

Assisti ao documentário "Sissi", dirigido por Ana Rieper e disponível no novo serviço de Streaming da FIFA, o Fifa+ (até o momento totalmente gratuito) e fui tocado pela verdade presente naqueles pouco mais de vinte minutos.
Confesso que até então, assim como muitos brasileiros, conhecia pouco da história e da trajetória de Sissi. Tudo o que ouvia falar sobre ela estava relacionado ao fato de ela ter sido uma espécie de pioneira do futebol feminino no Brasil, antecessora da Rainha Marta, certamente a jogadora de futebol brasileira mais premiada e reconhecida no mundo todo.
Mas a singularidade vai além desse papel quase que fatalista de ter que cumprir uma função para que algo melhor e maior viesse posteriormente. A história e os feitos de Sissi deveriam bastar em si mesmos e serem muito mais divulgados e reconhecidos por todos.
Um detalhe marca o início do documentário e da vida de Sissi no futebol: criança e adolescente em uma época na qual o Brasil vivia em uma ditadura e o futebol feminino era proibido, Sisleide teve que recorrer à criatividade e à realidade concreta em que vivia para jogar bola: arrancou as cabeças de suas bonecas e fez delas as suas primeiras bolas.
Esse simples gesto já mostra bem que para essa futura imperatriz certas barreiras e obstáculos não seriam adversários que conseguiriam vencê-la facilmente.
Mesclando imagens atuais, do trabalho de Sissi nos EUA, como técnica de um time juvenil de futebol feminino, com relatos de outras jogadoras de futebol feminino e da irmã de Sissi, além de momentos marcantes da Imperatriz dentro dos gramados, com destaque para a Copa do Mundo Feminina de 1999, na qual foi artilheira e segunda melhor jogadora do torneio, o documentário consegue mostrar que para além da categoria, garra e genialidade que demonstrava dentro das quatro linhas, Sissi também foi fundamental fora delas.
Nesse sentido, acredito que o melhor símbolo disso seja o cabelo raspado. Numa época em que o futebol feminino no nosso país não tinha nem de perto o respeito que hoje começa a ter e conquistar, dirigentes, de forma machista e equivocada, falavam abertamente da falta de "mulheres bonitas" neste esporte e em alguns casos chegaram até a proibir que atletas jogassem de cabelo curto, alegando possíveis patrocínios de marcas de xampu.
Sim, parece surreal saber que "argumentos" assim eram utilizados há pouco mais de vinte anos, mas foi essa a realidade enfrentada por Sissi e diante disso não seria uma simples escolha estética vestir a camisa da Seleção Brasileira com o cabelo raspado. Esse é apenas um dos símbolos que cercam essa figura, infelizmente pouco lembrada por muitos.
No momento final do documentário, uma cena aparentemente despretensiosa, simples, mas que pra mim resume a verdade com a qual fui tocado e que mencionei no início do texto: Sissi recebe Michael, seu filho e eles assistem a alguns dos lances da Imperatriz. A câmera não mostra os lances, apenas as reações de mãe e filho. Elas dizem muito sobre o orgulho, singelo e sincero, de quem fez o que fez sem se ancorar em nenhuma desculpa, sem se esquecer de que o belo muitas vezes pode ser simples, divertido, leve e de que, da mesma forma que um zagueiro não vê saída diante de um drible desconcertante e um goleiro não vê saída diante de uma falta bem colocada, aqueles que promovem o preconceito e a intolerância não vêem saída diante do sorriso no rosto, da felicidade de quem sabe ser feliz com o que se tem e o que se é. A Imperatriz da bola, do amor e da verdade merece todo respeito. P.S.: O gol de Sissi sobre a Nigéria, nas quartas de final da Copa do Mundo de 1999 é algo a ser visto.
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